No sítio onde se guarda a lenha há teias de aranha, enormes: lembram
uma toalha de renda!
O musgo cresce junto à nora, e o céu, ali, é um céu verde, feito da
folhagem da maior nogueira que deve existir na terra. Porque o milagre maior é,
realmente, esta nogueira.
Na horta há ainda outra coisa espantosa! Uma coisa que maravilha e não
me canso de olhar: uma velhinha, a dona de tudo aquilo.
Tem cem anos de vida!
Cem anos!
Tem mesmo. De verdade.
Na primavera, quando o tempo está doce, as abelhas, as borboletas, as
andorinhas, andam numa pressa, logo de manhã, e a filha, que também já é muito
velha, pega numa cadeirinha que parece de brincar e senta-a debaixo da
nogueira. Senta a velhinha de cem anos, que não se sabe bem se está acordada,
se está a dormir, se está a pensar.
Logo que toca para o recreio, já disse, corro para lá. O Tomba-Lobos
lambe-lhe as mãos e ela ri-se. Mas não diz nada. Faz-lhe só uma festinha, na
cabeça.
À sua volta andam as aves e o perfume doce das laranjeiras em flor.
Então, eu sento-me na pedra do tanque. Sento-me e olho-a.
Olho-a muito. Parece uma raiz! Parece uma boneca pequenina! Parece um
tronco que está à espera que lhe nasçam folhas e flores.
Já viu tantas estações do ano! Viu guerras e viu paz. Gente. Tanta
gente. Searas a arder, gritos, casas a construírem-se, casas a ficarem só
parede e memória.
Viu nascer trigo e papoilas, colher azeitonas e fazer azeite,
camponeses a cantarem abraçados e tristes, no tempo do desemprego. O que ela
deve ter visto!
Já foi pequenina como eu, mas não foi à escola porque, dantes, este
largo não tinha escola: era apenas seara e árvores. De certeza que viu nascer
esta nogueira. Viu-a crescer, dar frutos, tapar o sol de verde e aves.
Mexeu na terra, semeou coentros, couves, alfaces, plantou flores,
deitou galinhas, viu nascer pintainhos, bezerros, teve filhos, netos, bisnetos,
e sentou-se aqui, nesta sombra fresca durante os seus cem anos de história. Às
vezes, toco-lhe nas mãos.
Os dedos dela parecem raízes!
Uma manhã, apanhei um malmequer e pus-lho no colo.
Ela pegou-lhe devagar, como se estivesse a ver o Sol nascer. Olhou
para mim e era como se descobrisse o mundo pela primeira vez.
Sorriu.
Lá do fundo do tempo, arrancou uma voz fina, uma voz que não era voz:
era vento, era chuva, era a água da nora sobre as avencas. E disse assim:
— Deem laranjas a esta menina!
Depois, adormeceu com o malmequer na mão.
E eu olhava-a e parecia-me que, sem ela ali, tudo ficaria incompleto e
sem sentido naquele lugar de infância.
Maria Rosa Colaço
Maria tonta como eu
Distri Editora, s/d
Maria tonta como eu
Distri Editora, s/d
Sem comentários:
Enviar um comentário
Por favor, comenta com ponderação. Obrigada!